domingo, 28 de fevereiro de 2010

Hanna Arendt e a violência urbana no Brasil




Sílvio Lanna
Hanna Arendt foi dessas pessoas de profunda acuidade intelectual, cujos pensamentos ultrapassam seu próprio tempo e postergam-se na história, prontos para serem revisitados a qualquer momento, plenos de atualidade e vigor. Nascida judia alemã, tornou-se doutora em filosofia, tendo sido aluna de grandes mestres como Heidegger.
Por força do antisemitismo alemão teve que fugir para Paris, Praga, Genebra e, em seguida, para os Estados Unidos. Em seu trabalho filosófico abordou com profundidade e lucidez a política, os dilemas da autoridade, o totalitarismo, a educação e a violência, dentre outros. Não obstante a profundidade da obra de Hanna, fiquemos por ora com sua abordagem do que chamou de "Banalidade do Mal", ocorrência, segundo ela, derivada das atitudes humanas condescendentes com o sofrimento, a dor, a tortura, enfim, com o mal em si.
Em razão disto, necessária seria a vigilância da sociedade em defesa da liberdade, bem maior.
A "pensadora da liberdade" questionou a violência, seja ela praticada com ou sem permissão sócio-política. Desta forma, a intervenção das forças de paz da ONU em episodios como Kosovo, Bagdá, Porto Príncipe e outros guardaria similaridades em suas consequências com episópios como o 11 de setembro. Assim, a política oficial norte-americana de segurança, permitindo ataques e invasões preventivas em qualquer parte do mundo, também corporifica a banalização da violência referida pela autora.
Já disse ela em "Da Violência" que: "A prática da violência, como toda ação, transforma o mundo, mas a transformação mais provável é em um mundo mais violento."
Importante relembrarmos também Zigmunt Bauman (in "Modernidade e Holocausto): que afirmou: "...o nazismo era cruel porque os nazistas eram cruéis; e os nazistas eram cruéis porque as pessoas cruéis tendem a se tornar nazistas."
Sob essa ótica, portanto, os pontos a serem atacados pela sociedade são a "crueldade" (e seus similares, determinando-se inclusive qual a origem e cura desse estado de ser) e o "nazismo" (e outras modalidades de violência, tomando-se medidas que impeçam sua existência e proliferação).
A partir destas breves lembranças, pensemos o caso da violência urbana no Brasil (que em algumas cidades tem sido considerado o maior problema enfrentado pela população).
Muitas soluções são apresentadas, como a redução da maioridade penal, a adoção das penas de morte e perpétua, a castração química em casos de pedofilia e de estupro e até mesmo da utilização de corpos de criminosos hediondos para retirada compulsória de órgãos para transplante.
Há também os que defendem a permissão de atos de tortura para obtenção de confissões, bem como a ampliação dos direitos de policiais militares e civis de matar criminosos em combate.
A criatividade vai mais além: há ainda os que defendem o retorno da ditadura militar ou da monarquia, por considerar tais regimes como um porto seguro para a tranquilidade e a paz social, bem como para o combate à corrupção.
Entretanto, todas as soluções acima, divulgadas pela mídia e oriundas de cidadãos e de diversas entidades da sociedade civil atacam fundamentalmente as consequências e não as causas.
Vejamos: se a reduçao da maioridade fosse solução era só situá-la em 1, 2 ou e anos de idade!!! A adoção da pena de morte e da castração, além de possuírem elevada capacidade de produzirem erros, atacariam somente os criminosos em quem fossem aplicadas, jamais influindo na gênese do problema. Maior liberdade para o assassinato legal, além do potencial de erros, possivelmente colocaria a sociedade à mercê daqueles maus policiais que hoje já se assemelham aos marginais. Já a ditadura ou a monarquia seriam típicas soluções de avestruz, uma vez que o controle e a restrição de informações foram manobras historicamente adotadas por ambos os regimes.
Por analogia ao pensamento de Hanna Arendt, concluímos com facilidade que a banalização do mal ocorre em duas vertentes:
- Por nos acostumarmos com ele a tal ponto de o considerarmos corriqueiro (como aconteceu com o jogo do bicho, com as propinas a funcionários públicos, com os pequenos furtos de consumo em supermercados, com o "fura-fila", com as infrações de trânsito e outros).
- Por admitirmos a contraviolência, ou seja, a aplicação pelo Estado da mesma qualidade da ação empreendida pelos meliantes (como aconteceu com a condescendência social à tortura policial, com os linchamentos por parte de cidadãos indignados, com a excessiva violência empreendida por órgãos de segurança e outros).
O problema é gigantesco e não será com soluções oportunistas ou motivos de ocasião (como as Olimpíadas e a Copa do Mundo) que poderemos resolvê-lo.
Se a sociedade civil, legisladores, políticos e magistrados não se reunirem em um projeto amplo, porém rápido, de revisão da estrutura normativa penal e processual com vistas a adequar o Brasil ao século XXI, teremos que conviver a cada dia mais com a crescente violência.
Se a educação formal brasileira não for ampliada e aprofundada para os bolsões de pobreza (inclusive com incentivos à permanência de alunos em salas de aula), veremos crescer mais ainda as diferenças sócioeconômicas que são, em potência, o germe do mal.
Se a redistribuição da renda e a melhoria de qualidade da saúde pública não forem colocadas em prática, veremos estender-se a revolta e o sentimento de revanche daqueles que, esquecidos pela pátria, encontram muitas vezes nas organizações marginais a proteção que anseiam.
Se por outro lado nós abraçarmos o princípio de atacar a criminalidade com seus instrumentos, sua forma e suas armas, estaremos fadados ao fracasso, pois as batalhas serão desiguais em nosso desfavor.

Um comentário:

  1. Excelentes lembranças: Hanna Arendt e Zigmunt Bauman. A violência e a crueldade contra o outro ser-humano só torna a civilização mais incivilizada e ferida em seus contratos sociais.
    Usar as mesmas armas dos agressores só nos fará igual aos agressores. "Olho por olho e a humanidade acabará cega" já disse Gandhi. O que devemos e precisamos fazer é garantir que as instituições não sejam usadas e abusadas pelos que não percebem o espaço do outro e o direito do outro. Ao banalizarmos a violência, no dia a dia, permitimos que o "ovo da serpente" rompa sua casca.Homens de boa vontade e gentileza nos corações, uni-vos!

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