Mais de 400 anos nos separam de Shakespeare e seu genial Hamlet, uma das obras literárias de maior expressão da língua inglesa. É uma história de traição, assassinatos, vingança, golpe de Estado, fantasmas e assombrações, loucura, impasses morais, paixões e a derradeira tragédia que coroa drama tão fundamental para a literatura de todos os tempos.
Hamlet é obra
complexa, enviesada, repleta de questionamentos existenciais e da incerteza,
que são traços da alma humana.
As ambiguidades lá
presentes também tornam o notável drama uma obra sempre atual. “Nada em si é bom ou mau, depende daquilo que
pensamos.” Nesse momento questões éticas que se entrelaçam com a história,
trazendo à consciência do príncipe e também de nós, brasileiros, tantos
momentos de incerteza e dubiedade moral.
É nesse contexto que
o Palácio das Artes apresenta (no Teatro João Ceschiatti) a peça "Há algo de podre no reino da Dinamarca". A troupe, constituída pelos formandos do curso de
teatro do Cefart – Palácio das Artes transporta a história para nosso momento
recente, produzindo um espetáculo de alta qualidade e pujante criatividade.
Ponteado por alguns momentos
de humor (que se prestam a esfriar a chapa), a trama se revolve em espesso
drama, ocasionais situações nonsense e constantes pontos de intersecção entre o
drama inglês e momentos da realidade brasileira.
Ditadura, tortura,
avanço da direita em tempos recentes e a virtual incerteza nacional com relação
a seu futuro são discutidos com o mesmo espírito que norteou Shakespeare em seu
drama universal.
As identidades entre
ambos percorrem todo o transcurso da apresentação, estando presente no teatro e assistindo à peça até mesmo um fantasma. Não é mais o pai de Hamlet
buscando vingança. É uma assombração verde e amarela que, não obstante envolta
em brumas existiu e existe e conosco vem convivendo desde a ditadura. Permanece assombrando mentes comodamente assentado entre os expectadores, porém incógnito. Protegido está pelas precárias definições da Lei de Anistia. É fantasma. Mas ainda causa
tragédias e tem o poder de intervir até mesmo em discussões atualíssimas de
nossa política.
São as ambiguidades
e dúvidas de Hamlet que têm conduzido nossa história recente, aqui presentes
pelo notório desapego de nós, brasileiros, pelo aprofundamento intelectual e
pela análise circunstanciada dos fatos que construíram nossa nação.
Trazem os atores
também à pauta questões como homossexualismo, afirmação social da mulher,
liberdade de expressão, tudo rodeado por um Hamlet indefinido, inconstante e
atemporal, que atravessa os séculos em sua catarse filosófica.
Arrematando as
impressões, é precioso notarmos que atores e personagens se misturam. Estes,
tratados pelos próprios nomes daqueles, provocam um inusitado – mas profundamente
autêntico – comprometimento da troupe com o excelente texto, com a precisa direção e com a própria
história que ali está representada.
Não é peça que se
assista sob a ótica de “formandos”. São atores em cena, trajados com o figurino
histórico, mas vestidos de si mesmos, em um desempenho memorável. Estão maduros
e prontos para enfrentar o profundo comprometimento da arte com o país e seus
revolvimentos sociais.
Para que serve a
arte, afinal? As respostas estão em “Há algo de podre no reino da Dinamarca”,
dispostas entre risos, apreensões, incertezas, relatos e profundo
comprometimento com a brasilidade.
Lá está Hamlet, mas
também estamos nós, não somente na interação oportunamente provocada com a plateia,
mas também pela obrigação de nossas consciências, como partícipes que somos da
construção de nosso pais.
É pra assistir, deliciar-se
e aplaudir de pé.