sábado, 30 de junho de 2018

HÁ ALGO DE PODRE NO REINO DA DINAMARCA




Mais de 400 anos nos separam de Shakespeare e seu genial Hamlet, uma das obras literárias de maior expressão da língua inglesa. É uma história de traição, assassinatos, vingança, golpe de Estado, fantasmas e assombrações, loucura, impasses morais, paixões e a derradeira tragédia que coroa drama tão fundamental para a literatura de todos os tempos. 
   
Hamlet é obra complexa, enviesada, repleta de questionamentos existenciais e da incerteza, que são traços da alma humana.

As ambiguidades lá presentes também tornam o notável drama uma obra sempre atual. “Nada em si é bom ou mau, depende daquilo que pensamos.” Nesse momento questões éticas que se entrelaçam com a história, trazendo à consciência do príncipe e também de nós, brasileiros, tantos momentos de incerteza e dubiedade moral.

É nesse contexto que o Palácio das Artes apresenta (no Teatro João Ceschiatti) a peça "Há algo de podre no reino da Dinamarca". A troupe, constituída pelos formandos do curso de teatro do Cefart – Palácio das Artes transporta a história para nosso momento recente, produzindo um espetáculo de alta qualidade e pujante criatividade.

Ponteado por alguns momentos de humor (que se prestam a esfriar a chapa), a trama se revolve em espesso drama, ocasionais situações nonsense e constantes pontos de intersecção entre o drama inglês e momentos da realidade brasileira.

Ditadura, tortura, avanço da direita em tempos recentes e a virtual incerteza nacional com relação a seu futuro são discutidos com o mesmo espírito que norteou Shakespeare em seu drama universal.

As identidades entre ambos percorrem todo o transcurso da apresentação, estando presente no teatro e assistindo à peça até mesmo um fantasma. Não é mais o pai de Hamlet buscando vingança. É uma assombração verde e amarela que, não obstante envolta em brumas existiu e existe e conosco vem convivendo desde a ditadura. Permanece assombrando mentes comodamente assentado entre os expectadores, porém incógnito. Protegido está pelas precárias definições da Lei de Anistia. É fantasma. Mas ainda causa tragédias e tem o poder de intervir até mesmo em discussões atualíssimas de nossa política.

São as ambiguidades e dúvidas de Hamlet que têm conduzido nossa história recente, aqui presentes pelo notório desapego de nós, brasileiros, pelo aprofundamento intelectual e pela análise circunstanciada dos fatos que construíram nossa nação.

Trazem os atores também à pauta questões como homossexualismo, afirmação social da mulher, liberdade de expressão, tudo rodeado por um Hamlet indefinido, inconstante e atemporal, que atravessa os séculos em sua catarse filosófica.

Arrematando as impressões, é precioso notarmos que atores e personagens se misturam. Estes, tratados pelos próprios nomes daqueles, provocam um inusitado – mas profundamente autêntico – comprometimento da troupe com o excelente texto, com a precisa direção e com a própria história que ali está representada.

Não é peça que se assista sob a ótica de “formandos”. São atores em cena, trajados com o figurino histórico, mas vestidos de si mesmos, em um desempenho memorável. Estão maduros e prontos para enfrentar o profundo comprometimento da arte com o país e seus revolvimentos sociais.

Para que serve a arte, afinal? As respostas estão em “Há algo de podre no reino da Dinamarca”, dispostas entre risos, apreensões, incertezas, relatos e profundo comprometimento com a brasilidade.

Lá está Hamlet, mas também estamos nós, não somente na interação oportunamente provocada com a plateia, mas também pela obrigação de nossas consciências, como partícipes que somos da construção de nosso pais.

É pra assistir, deliciar-se e aplaudir de pé.